quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Você está falando é com homem, não é com moleque não

Uma série de coisas me aconteceu nas últimas semanas. Primeiro meu computador deu pau. Foi consertado, mas depois tive que resolver assuntos referentes à transferência de propriedade da minha carruagem. Quando finalmente me sentei para escrever uma nova bobagem, descubro que o carinha que consertou meu computador não instalou o Word nele. Tive que baixar uma versão pirata, o que demorou horas. Além de tudo, meu horário de trabalho foi novamente mudado, me deixando menos tempo para escrever. Conforme alardeado anteriormente, a história de hoje teve metade escrita antes e metade escrita depois dos acontecimentos acima relatados. Acho que vai dar pra perceber isso.


O personagem se chama Diógenes. Tem 26 anos e trabalha como professor de legislação de trânsito em uma auto escola num bairro coladinho ao seu. Gasta 15 minutos de caminhada para o trabalho. É um desses caras gosta de se enganar, colocando o despertador para tocar meia hora antes do horário de levantar. Mas quando você se auto-engana-se a si mesmo e está ciente disso, a coisa perde o efeito. Aliás, as pessoas estão quase sempre a par do que elas mesmas tramaram:
- Nossa! Tá na hora, tá na hora, tá na hora!...Ah não! Ai que susto! Ainda tem mais uns minutinhos.
Para ajudar, o preguiçoso dorme com a janela escancarada, para que a alvorada intencionalmente atrapalhe seu sono. Ainda assim, é comum a anta botar o travesseiro por cima da cara e dormir mais 40 minutos. Se assusta e sai correndo para o trabalho, sem banho, azedo, com a cara amassada, com o cabelo despenteado e cheio daqueles pelinhos de travesseiro. Isso para não falar nos dias em que dorme com a namorada e eles fazem vuco-vuco antes de dormir. Veste o uniforme por cima da porra cristalizada na barriga.
Ainda assim chega atrasado. Vez ou outra até que vai, mas acontece com muita freqüência. O foda é que a mesa do chefe fica imediatamente de frente para a entrada. Nem tem como ele subir para a sala de aula passando despercebido. Ao avistar o jovem professor, o chefe olha para seu relógio de pulso; olha para o relógio na parede atrás de si, como que para confirmar. Com um olhar de reprovação, diz, precisamente:
- Hauomenpf.
Claro que em nenhuma profissão se deve chegar atrasado, mas provavelmente a de professor é a que isso mais se acentua, já que tem uma turma inteira que paga caro para assistir as aulas e que fica na sala esperando a boa vontade do bonitão em aparecer. Quando chega no recinto, já tá todo mundo prostituto com ele. Além disso, professor não pode faltar. Nem sair para atender o celular. Quer dizer, poder até pode, mas pega mal pra caralho.
Uma coisa sempre frustou Diógenes: Ralava igual um burro de carga ensinando os outros a dirigir, sendo que ele próprio sequer tinha um carro. Como diria o poeta, ele não tinha nem merda no cu para cagar. Enquanto isso, alunos de 18 anos ganhavam carros novos do pai e mulheres gostosas ganhavam de seus maridos 40 anos mais velhos.
Dois anos dando aula, frustrado por andar a pé, quando a oportunidade surgiu. Um senhor chamado Renato, que comia Ione, tia de Diógenes, parcelava um carro no valor de oito mil reais pela Finasa. Porém, precisou de dinheiro para fazer sabe-se lá o que quando estava lá pela nona parcela. Ione adorava o filho da irmã. Tanto que, mesmo este tendo um nome horroroso, resolveu chamar seu próprio rebento também de Diógenes. Sabendo que o sobrinho queria comprar um carro, Ione colocou ele e o Renatão-comedor-de-tia em contato. Diógenes deu os três mil pagos por ele até então e assumiu o restante do carnê. Um acordo de cavalheiros feito na esfera amigável.
Algumas semanas depois, nosso guerreiro foi na casa da tia buscar os documentos. Em lá chegando, descobre que ela não está mais dando para Renato, que revelou-se um psicopata. Nas duas horas em que esteve lá, testemunhou as mensagens que ela recebia: “eu t amo, volta p mim”; “voce e uma cachorra vadia vai morrer n inferno”; “um amor tao lindo n se perde deste jeito”; “quer saber ja t esqueci. e nem adianta vir m procurar viu”; “ estou n porta d sua casa”; “acabou tudo?”. Foi aí que ele entendeu algumas mensagens estranhas que recebeu duas ou três vezes: “preciso falar c sua mae”; “amo voce como s fosse um filho”. Obviamente o doidão achava que aquele era o número do priminho de dois anos. Precoces essas crianças de hoje, né?
Rolou um medinho de que o obcecado amante o ameaçasse ou o acuzasse de roubo. Vai lá se saber; esses psicopatas não costumam ter a cabeça muito no lugar. “Se esse viado vier me ameaçar, eu pego esse carro e subo e desço essa Avenida Coronel Mequesquela a cem por hora umas dez vezes. As multas vão tudo pra casa dele”.
Bem, para que Diógenes passasse o carro para seu nome, obviamente era necessário primeiro passar o parcelamento para seu nome. Foi até a Finasa precavido. Já sabia que esse tipo de pessoal adora cobrar taxa por qualquer servicinho besta. “Por segurança, vou levar uns cem reais no bolso. Qualquer taxa que eles me cobrarem eu pago hoje mesmo”.
- Boa tarde. Por obséquio, como eu faria para transferir o custeamento de um automotor que está no nome de outrem para o meu próprio?
- Bem, o senhor preenche esse cadastro aqui e paga uma taxazinha de serviço.
- Hummm. Aí seria quanto? Cinco, dez reais?
O atendente da financeira, distraído com algo atrás de si:
- Centosrrais.
- Perdão. Quanto?
Agora limpando a boca com as costas da mão:
- Centosrrais
- Mas hein?
- Seicentos reais. São cem para pagar o investigador, que precisa ver se você não tem nome sujo, se tem condições de assumir o financiamento, essas coisas. E mais quinhentos que é referente aos encargos de tranferência.
Aí nosso herói perdeu a classe:
- Seicentos conto? Cês tão tudo doido, gente? Porra, quanto pode custar uma merdinha de um talão desses? É só imprimir um aí agora com outro nome.
Prosseguiu o raciocínio, agora dando tapinhas no ombro do atendente:
- Quer saber? Vai ficar no nome dele. Tô nem aí. Não pago essa taxa abusiva mas nem a caralho!
O atendente fez um bico enquanto balançava a cabeça com uma expressão de quem diz: “Foda-se”. A multa pela não transferência de propriedade dentro de um mês é de 130 reais. E é sempre esse valor, independente do tempo demorado. Era melhor para Diógenes pagar dali um ano os 130 de multa do que pagar 600 de imediato.
Estava tudo correndo bem até ele ser pego numa blitze com o pneu “calvo”. Como o carro estava no nome do Renatão Comedor, a multa foi parar na casa deste último. Deu alguns dias até Diógenes receber um telefonema. Uma voz desequilibrada do outro lado da linha:
- En-engraçado, chegou uma mu-multa aqui na minha casa desse carro que eu vendi para você. Escuta, vo-você ainda não passou esse carro para o seu nome na-não?
- Nnnn.
- Pode-se saber o porquê?
- Olha, eu cheguei lá na Finasa e eles me cobraram 600 reais. Eu não tenho essa fortuna toda. Você sabia dessa taxa?
- Rapaz, eu não quero sa-saber. Arranja esse dinheiro. Dá o seu jeito.
- Porra. Arranja? Você acha que é assim? 600 reais: Puf! Arranjei.
A anta fala estalando os dedos como se o interlocutor o visse.
- O-olha não sei se você estuda ou coisa assim. Pe-pega com o seu pai, sei lá.
- E você acha que eu vou chegar para o meu pai e falar: “Pai, me vê seicentinhos aí”. Você conhece meu pai, cara? Espera um pouquinho, que daqui uns meses eu passo para o meu nome.
- E se-se você, Deus que me perdoe que i-isso não aconteça, e se você atropelar um pedestre? E-eles vão vir atrás de é de mim, não de você.
- Calma cara, o recibo já está em meu nome. Carimbado. Com data. Não tem como você sair culpado por nada. Eles podem até ir atrás de você, mas é só você me passar a responsabilidade. Eu tô aqui. Você sabe onde eu moro, meu número.
- Olha, você tá mu-muito mal informado. Na-não é assim que as coisas fu-funcionam.
- Eu, mal informado? Eu que sou professor de legislação estou mal informado, amizade? Então não sei quem está certo. Só se eu ensino errado aos meus alunos todos os dias. Porque você então não me empresta essa grana?
- E-eu não. Você que se vire.
- Tá vendo como não é fácil arranjar? Nem você que é parte interessada quis me ajudar. 600 reais é dinheiro, rapá.
- Vo-vou ter que entrar com um empendimento e você não vai po-poder nem rodar com esse carro.
- Velho, se eu não fiz a transferência o problema é meu a partir de agora. Depois eu vou ter que pagar uma multa por isso. Normal.
Renatão Doidão alugou o ouvido de Diógenes. Ligou várias vezes para saber se ele já tinha pago a multa e quando é que ele iria trasferir o carro para seu nome. E sempre recorrendo ao caso do pedestre atropelado. Diógenes:
- Olha, eu nem falei que era você que devia ter pago os 600 reais. Sim, porque o interesse maior era seu em vender. Não te falei porque achei a taxa abusiva. Acho que nem eu nem você devaríamos pagar. Aliás, aquela multa, você é que deveria ter pago. Você é que me vendeu um carro com o pneu careca. Você não foi homem de ter me avisado.
- Grraumf.
- ...me vende um carro com pneu careca e fica aí reclamando da vida.
Alguns meses depois:
- Di-diógenes, você tá rodando com esse carro?
- Aaaahhh.
- Eu se-sei que você tá andando com e-esse carro. Eu te vi uma vez na rua com ele.
- E nem cumprimentou?
Historinha estranha essa. A cidade tem muitas pessoas e muitos Escorts Hobby. Faltando quase dois meses para acabar de pagar o carro:
- Calma, cara. Eu não vou passar em cima de ninguém não, fica tranquilo. Você tá obcecado com essa história de eu atropelar uma pessoa. Espera só mais uns meses que eu vou tomar cuidado, tá? E se acontecer alguma coisa, pode vir me procurar que eu assumo. Você tá falando é com homem, não é com moleque não.
- Olha, se você na-não passar esse carro para seu nome a-até o fim do mês eu vo-vou te tomar esse carro, rapaz.
Parecia insensato pagar a taxa de 730 reais quase no último mês. Bem, mas sensato era uma coisa que Renato não era.
Parece que é só falar que a desgraça acontece. Era o primeiro dia do horário de verão. Todo mundo sabe que neste dia o pessoal ainda não está acostumado. Muitos acabam se atrasando para o trabalho. Ainda mais nosso combatente que usava a luz do amanhecer como artifício para acordar. Cinco da manhã, ainda mais no horário de verão, tá um breu total. Quando acordou definitivamente, olhou no relógio. 6:32. Ele já deveria estar dando aula. Desde que adquiriu o carro, ia trabalhar motorizado nos dias em qua saía tarde de casa. Ganhava uns cinco minutos com isso. A víbora da vizinha, ao ver o jovem correndo as escadarias do prédio, diz maleficamente:
- Bom dia, Di. Como está?
Claro que não houve resposta. Na escuridão das ruas, saiu enfiando o pezão no acelerador. Dirigia tremendo e o coração lhe saía pela boca. Sabia que o chefe estava ficando farto dos seus atrasos. Para completar, chovia. Bem, você já deve ter imaginado: Ele atropelou um pedestre. Pegou bem no estômago. Bateu a cabeça no poste. Estava ainda no quarteirão de casa. Rapidamente lhe veio na cabeça a imagem do Renatão imitando a motinha do Carangos e Motocas:
- Rá! Eu te disse, eu te disse.
Mas não dava para fugir e abandonar o acidentado ali, como ele filantropicamente pensou. Com certeza, através da intrometida vizinha, chegariam nele. Teria que levar o infeliz para o hospital. Porém, sabia que o chefe não seria tão compreensivo se ele ligasse justificando sua falta. Seu emprego já estava por um fio. O atropelado, ainda meio inconsciente:
- Ai minha cabeça....Onde estou? Tô vendo uma luz. Minha vó. Meu cachorro Bobby. E olha, também tô vendo a.....
Levou um socão na cara. Diógenes abriu o porta-mala e lá colocou o desconhecido. Se imaginou usando um chapéu de lado, um terno bem cortado e um charuto no canto da boca, como o personagem de um filme de gângster que havia visto. Foi difícil se concentrar em dar aula naquele dia. Não conseguia tirar da cabeça o pobre rapaz preso no porta-malas. Nem sabia o que ia fazer com o corpo.

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