quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A epopéia das chaves esquecidas dentro do carro e a peguete

É impressionante como tem gente que se aproveita da necessidade dos outros para poder lucrar com a desgraça. Você passa no centro da cidade e vê um monte de vendedores dizendo, melhor, gritando:
- Olha o guarda-chuva, é cinco real, freguês! Dois é sete!
De repente a tormenta se avizinha, ameaçando virar dilúvio. O mesmo ambulante, com um sorrisinho no canto dos lábios:
- Olha o guarda-chuva, é só 10 real, freguês! O snorkel é 50 real!
Tem vezes em que o vendedor é a vítima. Vinte minutos depois de começado um show qualquer:
- Por favor, senhor cambista, quanto ta o ingresso pra ver o Creedance?
- Olha amigão, o Crindence ta 30 real.
- Te dou vintinho.
- Vinte? Fechado, fechado, fechado.
A alguns anos, os motoristas de ônibus de nossa cidade acharam que e operação linguição (olha a maldade, olha a maldade) ainda era pouco para reivindicar seus direitos, e resolveram entrar em greve total. Então os perueiros, profissionais autônomos que faziam frente ás grandes empresas de coletivos, viram nisto uma grande oportunidade e começaram a cobrar cinco reais de cada passageiro, numa época em que uma passagem custava em torno de um real. Hoje em dia essa atividade foi quase erradicada da nossa cidade e existem apenas uns bravos resistentes que ficam perto da rodoviária dizendo, melhor, gritando:
- Ipatinga, Valadares! Ipatinga, Valadares!


Pois bem, o caso aconteceu com um amigo meu, não foi comigo não. Esse amigo, chamemo-lo de “Carlos”, passou no supermercado, depois do trabalho, para fazer as compras do mês. O Carlos, que nunca foi muito jeitoso com as coisas, chega em casa e tenta sair do carro, chamemo-lo de “Trovão Azul”, tentando se equilibrar no meio daquele mundo de sacolas. Fecha o carro com a anca, o que deixa um sulco na porta, no formato de suas nádegas. Algumas horas depois, ele recebe uma ligação de sua, digamos, peguete.
- Oi bem, você não quer vir aqui em casa ouvir um CD que eu comprei?
- Quinze minutinhos eu tô aí.


“É hoje!”, pensa. Toma banho, passa perfume, veste a cueca de transar, veste a roupa, pega a camisinha. “Bom, agora só falta a chave do Trovão Azul”. Bate nos bolsos da camisa, da calça, revira a casa. Está relutante com a idéia de que as chaves talvez estejam dentro do carro. “Eu não fui burro deste tanto”. Mas foi. Vai e volta várias vezes para dentro de casa e para a garagem, cada vez tentando arrombar o próprio veículo com um objeto diferente. Tesoura, faca, grampo, clipe, agulha de tricô (sim, ele tem isso em casa), chaves de outras fechaduras. Nada adianta. Inclusive pelo porta-malas ele tenta violar (ui!) o carro. Ia ser no mínimo interessante aparecer o vizinho justamente neste momento. Imagine o Carlos com metade do corpo para dentro do carro, com a tampa do porta-malas violada (ui!), e as pernas pra fora. O vizinho, que sempre aparece nas horas mais constrangedoras, olha com uma cara mezzo de estranhamento mezzo de reprovação. O Carlos responde, através do vidro traseiro, com um arquear de sobrancelhas, como quem diz: “Cada um entra no próprio carro de jeito que lhe der na telha”. Mas não aconteceu. Ele volta para dentro da casa e liga para a peguete, com os lábios estremecendo, quase chorando:
- Vô mais não. Surgiu um imprevisto, sabe?
Então ele liga o computador, entra na internet e digita no Google: “Esqueci a chave dentro do carro”. Vários links para fóruns aparecem. Na maioria respondem: “Mas camarada, tu é burro mesmo hein?” Outros sugerem que se jogue uma pedra contra o vidro. Ele coça o queixo, e pensa, precisamente: “Hum!”. Minutos depois: “Melhor não; melhor pesquisar mais um pouco”. Vai no Youtube e digita: “Forgot my keys inside my car”. Vê vários vídeos interessantes, até mesmo curiosos, lê os comentários; “Man, are you dumb or sometihng?”. Porém, nada que sirva para o seu caso. Não vendo alternativa, Carlos foi trabalhar no dia seguinte a pé (realmente estava precisando perder alguns quilos, já que a bunda estava grande o suficiente para amassar a porta do carro). Na volta do trabalho, passou no chaveiro, a três quarteirões da sua casa, com a cara mais pidona do mundo:
- Amizade, você abre um Escort 94? Esqueci minhas chaves dentro de um. O carro é meu mesmo, viu?
O chaveiro, chamemo-lo de “Juca”, faz um “pfff”, como que segurando para não rir do cliente:
- Que sensação ruim hein, amigo? Vamo lá na minha moto.


Juca monta no veículo e joga um capacete rosa para o Carlos, que quase o deixa cair no chão. Já foi mencionado que nosso herói não é muito jeitoso com porra nenhuma.
Carlos nunca tinha andado de moto, mas, como é macho e corajoso, coloca o capacete rosa e sobe na moto, agarrado no cangote do chaveiro. As pessoas em volta olham estranho pra Carlos, que fica sem entender nada, até ver passar outra moto com dois ocupantes. Observou ele que o de trás ia segurando em alças que saiam da garupa da moto. A moto do chaveiro tinha alças semelhantes. Carlos pensa, precisamente: “Hum!”. Lentamente ele para com aquela viadagem, tirando os braços, que neste momento estavam entrelaçados no peito de Juca. Dá um tapa na moto e ainda tira onda:
- Tamo esperando o que pra ir embora?
O chaveiro deveria trocar de profissão; deveria ser alfaiate, de tanto que costurava no meio dos carros. Carlos, que já não era muito fã dos motoqueiros, passou a odiá-los ainda mais. Quase morreu umas duas vezes naqueles três quarteirões. De volta a sua casa, abriu a garagem e apontou o carro para o Juca. O chaveiro tira uma ferramenta do bolso e em três segundos abre o Trovão Azul.



- Quanto eu te devo?
Isso Carlos fala como quem espera uma resposta do tipo: “Amigo, só te cobro o passeio de moto e a casquinha que você tirou de mim. Uns 10 real e tá limpo”. Mas a resposta, mesmo, foi:
- Olha, normalmente eu cobro 40, mas como o seu carro é mais velho, é mais fácil abrir. Te cobro uns 30 real e tá limpo.
Porra, como se fizesse diferença. O cara abriu o carro como se fizesse: Um, dois, três, tcharam! Se fosse um carro novo, seria assim: Um, dois, três, grrrrrr, tcharam! O que a gente ta fazendo aqui? Cobrando 10 reais por segundo? Isso é o tipo de coisa que a gente faz como favor. É como consertar um vídeo cassete. Ele deveria ter até vergonha de cobrar alguma coisa.
Serviço pago, o chaveiro aponta para a BMW do vizinho abelhudo:
- E se fosse esse carro aqui, eu cobrava 60 real.
E arremata:
- Aqui, faz umas chaves reservas lá comigo. Te faço por oito real. Você evitaria ter que gastar 30 numa situação dessa.
O viado do cara fala isso como se não tivesse sido ele mesmo quem cobrou os 30 reais. E é claro que não ia precisar da reserva. Depois da traumática experiência, nunca mais alguém esquece as chaves dentro do carro.
Horas depois, Carlos percebe que deu os últimos 30 reais para o chaveiro ladrão. Outros 30 tinham sido gastos no dia anterior, no supermercado. Liga para a piriguete, digo, para a peguete, tentando reaver a foda do dia anterior:
- Aqui, eu to meio apertado de grana, porque você não vem aqui em casa pra gente ouvir um CD do Marvin Gaye?
Do outro lado:
- Apertado de grana é? Hoje não vai dar. É que surgiu um imprevisto aqui, sabe?
Nesta noite, o Carlos ficou duas horas dentro do banheiro, comendo chocolate.

3 Comentários:

Almeida José disse...

Grande Didi

Vim te falar q o teu blog valorizou a minha madruga,ri demais com os textos.

Porra,vo passar por aqui sempre q puder,virei fa de verdade(pq antes so era teu fa no orkut)

Caique

uklafayette.blogspot.com

Tio Didi disse...

Senti um tom meio viado no seu discurso, mas tá valendo.

Unknown disse...

Diogo, adorei a sua história, quer dizer a do Carlos.Rsss...
Deu para rir um bocado.

Quando vc encontrar com o Carlos, diga para ele que infelizmente esse tipo de coisa acontece. Pena que foi justo na hora que não deveria acontecer. Lei de Murphy né.

Beijos

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